O JornalDentistry em 2019-9-30
Hoje em dia, pela primeira vez, a humanidade dispõe de um acesso facilitado ao maior repositório de conhecimento que já existiu. A internet disponibiliza, à distância de uma tecla, informação sobre qualquer tema.
António Duarte Mata, DDS, PhD, FICD - Professor Catedrático da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Lisboa.
A quantidade é maciça, mas incontornável. Tudo, desde negócios à nossa vida (supostamente) privada se imprime numa pegada digital gigante da qual não conseguimos escapar. Este contacto permanente entre o virtual e o real introduz desafios consideráveis na interface entre verdade e ilusão, e apesar de a falsidade noticiosa sempre ter existido, hoje como nunca as notícias falsas (fake news) difundem-se na internet à velocidade da luz, atingindo milhões de leitores, com consequências políticas, sociais e económicas de tal forma importantes que o termo fake news foi considerada pela BBC a “palavra do ano” de 2017.
A saúde não é exceção e estes atos deliberados de desinformação podem, à semelhança do que acontece com eleições ou mercados financeiros, confluir em consequências absolutamente nefastas para a saúde pública. O debate sobre a utilidade da vacinação infantil será o exemplo mais recente, com alguns desfechos críticos em matéria de res- ponsabilidade de reemergência de doenças outrora erradicadas. De facto, estima-se que cerca de 40% das informações de saúde veiculadas nas redes sociais correspondam a desinformação fabricada.
Igualmente, em medicina dentária, as fake news tendem a aparecer como recomendações de saúde sem qualquer fundo de verdade sendo fabricadas e difundidas (também aqui) com um objetivo malicioso e/ou propósito económico.
São exemplos recentes programas televisivos sobre os inequívocos malefícios das “desvitalizações dentárias”, os benefícios das pastas dentífricas à base de carvão (algumas sem flúor), ou tratamentos alternativos para branqueamento dentário (alguns com formulações caseiras e supostamente fáceis de fabricar de forma autodidata) que se apregoam milagrosos, mais rápidos e mais eficazes, e que carecem de qualquer suporte científico.
Importa referir que, além das fake news, também a produção científica tradicional não se encontra isenta de pro- blemas, seja porque atualmente existem editoras que pro- movem publicações supostamente científicas, mas com critérios de revisão manifestamente insuficientes (“editoras predadoras”), seja porque alguns autores ou investigadores menos éticos, sucumbindo a pressões de publicação ou de parceria económica, fabricam estudos e resultados que conseguem em primeira instância publicar em periódicos res- peitáveis, ou ainda porque muita da ciência, mesmo com qualidade, tem prazo de validade, e alguns dos promotores da desinformação vão buscar conhecimento antigo e envie- sado para suportar de forma falaciosa novas ideias. Todos estes elementos se conjugam e são válidos para definir um arquétipo que designamos de Bad Science e que é promotor de desinformação com as consequências já acima referidas.
Esta informação difunde-se rapidamente e adquire grande poder de influência por variadíssimas razões. Em primeiro, porque as universidades e seus produtos, os profissionais no terreno, deixaram de ser a fonte privilegiada de informação. Antigamente, para o paciente ter uma opinião médica tinha de consultar um profissional com custos de tempo e dinheiro. Desta forma tornou-se mais apelativo tentar encontrar a informação de forma alternativa. O próprio facto de o conhecimento estar facilmente acessível introduz a perceção errada que hoje em dia todos podemos perceber de tudo. Adicionalmente, muitos repositórios diferentes de conhecimento, tais como sociedades, sites ou revistas online emergiram como centros de conhecimento alternativos às academias tradicionais. Isto não é forçosamente mau, apenas mais entrópico. O próprio conceito de medicina alterou-se, transitando do modelo médico para o modelo centrado no paciente, em que este é chamado a participar na decisão clínica. Este modelo altamente desejável pressiona, no entanto, a emergência de uma nova classe de pacientes mais inquisitórios e ávidos de conhecimento. No entanto, os humanos são mutuamente e altamente influenciáveis por aquilo que se designa como viés de confirmação, levando a que a bad science mais não faça do que confirmar crenças generalizadas e perceções, sobretudo se um suposto facto emerge de algo já visto ou veiculado inúmeras vezes, tornando-se mais credível que a verdade médica baseada na evidência.
A resolução deste problema é multifatorial, mas centra-se em quatro áreas críticas: conhecimento, médicos, pacientes e decisores. A evolução do conhecimento médico tem desenvolvido, nas últimas décadas, a partir da emergência da medicina baseada na evidência, mecanismos de avaliação e síntese de evidência que confluem em recomendações clínicas de grande qualidade e que devem ser vigentes e procuradas por todos. Ou seja, tanto autores como editores têm hoje mecanismos de avaliação que permitem melhorar substancialmente a qualidade da ciência produzida e publicada. Existem ainda novos tipos de produção científica, como revisões sistemáticas ou normas de orientação clínica, assentes em grande robustez de evidência científica.
Os médicos têm a responsabilidade de garantir que as suas decisões clínicas e informações dadas aos pacientes sejam baseadas na melhor evidência disponível. Para que tal aconteça é crítico que as universidades promovam nos seus curricula mecanismos pedagógicos que promovam a aquisição destas competências por parte dos alunos a nível pré e pós-graduado.
Os pacientes deverão ser sensibilizados a procurar fontes mais credíveis de conhecimento, mas tal facto implica mudanças profundas na sociedade e na forma como esta interage com a procura de informação. Aqui, as associações de pacientes, felizmente cada vez mais frequentes, representam um pilar essencial na difusão do conhecimento médico à população.
Finalmente, mas não menos importante, é absolutamente imperioso que os decisores invistam em mecanismos efetivos de disseminação de conhecimento de qualidade, quer aos médicos quer aos pacientes. Um excelente exemplo disso será certamente o projeto recente de disponibilizar gratuitamente a nível nacional, numa primeira fase aos médicos do SNS, numa segunda a todos os médicos, e eventualmente numa terceira a toda a população portuguesa, o livre acesso a uma plataforma de apoio à decisão clínica integrando a BMJ Best Practice, Cochrane Library, DynaMed Plus e UpToDate . No futuro, e com o inevitável desenvolvimento da medicina digital, será ainda fundamental que os decisores incentivem a criação de algoritmos tecnológicos e informáticos que permitam (de forma semelhante à que permite a disseminação das fake news) a deteção e disseminação automática de evidência clínica de qualidade.
Artigo publicado na edição impressa e digital do "O JornalDentistry" de setembro.
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