Texto de Fernando Arrobas, M.D. - ilustração de Diogo Costa em 2015-10-16
A definição de cultura não é uma realidade pacífica. Ir muito ao teatro, espetáculos ou exposições? Ler muito e com critério? Ser formado com um curso superior? Ser um académico ou intelectual? O que define afinal a condição privilegiada de “homem culto”?
Existem poucas profissões tão exigentes como ser médico dentista. O poder de intervir, num curto período de tempo,
sobre o sofrimento ou a qualidade de vida das pessoas trata-se de uma decisão que não cabe a todos profissionais tomar no dia-a-dia. Assumir a responsabilidade e ter convicção nas propostas terapêuticas exige longos e profundos tempos de prática e estudo. É uma área onde a formação é contínua e exigente. Semanalmente, de forma quase diária, passo a passo, com seriedade e rigor. A quantidade de literatura científica disponível nunca termina e os cursos e congressos, espalhados pelo país e pelo mundo, multiplicam-se.
A verdade é que, nos dias de hoje, a “hiperespecialização” e a velocidade vertiginosa dos progressos em medicina dentária impõem outros ritmos de leitura e dedicação, como não acontecia noutros séculos em que a informação não se difundia à distância de um click. Assim sendo, será sequer possível compatibilizar a “cultura científica em medicina dentária” com a “cultura generalista”?
Haverá tempo ou será possível um médico dentista debruçar-se sobre um romance de António Lobo Antunes depois de ler e tomar notas sobre um artigo científico que se refira aos
irrigantes ideais em endodontia?
Apesar da pessoa que procura o clínico para realizar os tratamentos dentários que necessita ter apenas interesse na competência profissional e não no cidadão atualizado sobre literatura ou outros assuntos, continuo a pensar que sim. Mais do que o esclarecimento e interesse profissional,
é também a transversalidade de interesses e conhecimentos que elevam qualidades tão importantes como a técnica e a teoria, nomeadamente a comunicação e o humanismo do ato clínico.
Acontece que a medicina é outra quando praticada por médicos cultos. Em Portugal sempre existiu essa grande tradição, que é de ansiar que permaneça. Adaptando a célebre frase do professor Abel Salazar, que dá nome ao Instituto de Ciências Biomédicas na Universidade do Porto, “quem só sabe de medicina (dentária), nem de medicina (dentária) sabe”.