JornalDentistry em 2023-9-20
A vida é feita de escolhas. Saber qual a melhor escolha a fazer já depende de múltiplos fatores, essencialmente culturais e sociais. Desde que me lembro, queria ser “doutora”. Em criança, quando fazia análises sanguíneas, não compreendia porque não me davam as agulhas.
Helena Afonso Agostinho. MD, DDS, MSc, PhD. Presidente da Sociedade Portuguesa de Ortodontia.
O problema resolveu-se com a transformação dos “alfinetes de dama” adaptados nas pontas das seringas.
E as bonecas viraram um crivo. Fui uma criança muito feliz até aos 8 anos, mas uma adolescente algo rebelde. Nascer num país (Moçambique) que também era Portugal e passar a ser refugiada em Portugal Continental foi muito duro. Em comum só havia a lín- gua, tudo o resto era diferente. Espero que um dia a verdade sobre os refugiados “portugueses” vindos de África seja escrita.
O meu pai era trabalhador e dirigente sindical, chegou a ser chamado pela PIDE, a minha mãe professora numa escola pública. Nunca soube o que era o fascismo ou racismo até ser refugiada. Os meus pais deram-me o poder da escolha aos 8 anos – viajar para um sítio seguro com uma irmã de 5 anos e separar-me deles por tempo indefinido, ou ficar. Uma criança não consegue resistir sempre.
No ensino secundário tive de escolher: entre a rebeldia e festa ou sonho de menina. Entrei em medicina aos 18 anos. Nem fazia ideia de que havia o curso de medicina dentária. Quando estava no 4o ano comecei a ser tratada por um médico dentista. Meia hora sem nada poder dizer e o colega a falar sobre as maravilhas da medicina dentária. Nesse tempo, a ministra da Saúde retirou a possibilidade de um médico especialista ficar no hospital onde tinha iniciado a formação especializada. Porque havia excesso de médicos! E que os mesmos não podiam pensar nas regalias que a classe médica tinha. Questionei: e se não entrasse numa especialidade que queria? E se ficasse sem emprego aos 30 anos? O que iria fazer? E se um dia não conseguisse ouvir um sopro cardíaco e o doente morresse? E se...? “O poder da escolha” fez com que decidisse mudar para medicina dentária no 5º ano de medicina. Fiz a licenciatura em medicina dentária na Escola Superior de Medicina Dentária de Lisboa (atual Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Lisboa - FMDUL). Eram 6 anos de curso, só se entrava a partir do 4o ano, por concurso. A admissão era pela média dos três primeiros anos de medicina e após testes psicotécnicos. O meu curso teve trinta e dois candidatos. No quinto e sexto ano éramos dezoito. Trabalhávamos em clínica todos os dias. Sou médica dentista desde 1991. Fui convidada a ficar na faculdade, mas precisava de trabalhar e ter dinheiro para me sustentar.
Nos três anos seguintes não fiz nenhuma pós-graduação. Trabalhei e fui mãe. Acabei mais tarde, depois do doutoramento, o curso de medicina. Tenho muito orgulho em ser médica dentista e médica.
Ortodontia e odontopediatria
Na faculdade a matéria lecionada em ortodontia era especial. Crescimento e desenvolvimento craniofacial, cefalometria de Bergen e umas dobras em aparelhos removíveis. Nem edgewise nem arco recto, técnica que tinha sido inventada por Andrews nos anos setenta.
Fruto de uma mente sempre irrequieta na procura do conhecimento e da descoberta, procurei formações na área da ortodontia e odontopediatria. A partir de 2001 fiz uma pós-graduação e conheci o Professor Eduardo Prado. É o responsável pela minha paixão pela ortodontia.
Em janeiro de 2007 escolhi Barcelona. Fiz um master de orto- dontia e foi o Prof. Durán Von Arx que me abriu a curiosidade com a sua filosofia e o seu sistema multifunction. Durante quatro anos, caminhei entre Barcelona e Lisboa. Em Barcelona, éramos doze portugueses no master e entraram nos cofres de ‘nuestros hermanos’ quase 500 mil euros da pós-graduação. Adorei o ensino. O paciente visto como um todo, os tratamentos e as funções orais com especial relevância. Já codificávamos o tamanho das amíg- dalas, adenóides, posição e mobilidade lingual e o tipo de res- piração. Fui estimulada a entrar no programa de doutoramento. Defendi a tese de doutoramento com o título “Estudo morfoclínico craniofacial em crianças com patologia respiratória crónica e res- piração oral” na Universidade de Barcelona, em colaboração com a Faculdade de Medicina de Lisboa e o Centro Hospitalar Lisboa - Norte (Hospital de Santa Maria). Eram duzentas crianças, todas com má oclusão dentária. Estudei as diferenças entre respiradores orais e nasais. Fico muito feliz que quase uma década depois se fale tanto não só na patologia respiratória do sono, como em res- piração oral diurna. Foram meus tutores o professor Josep Ustrell, por Barcelona, e os professores Francisco Salvado e Silva e Ivo Furtado, pela Faculdade de Medicina de Lisboa.
A consulta de estomatologia pediátrica do CHLN possibilitou-me tratar crianças com patologias diferenciadas, promovendo a interdisciplinariedade. Sou muito grata aos meus mestres. Sou especialista pela OMD em odontopediatria e os tratamentos ortodônticos em pediatria são a área que mais me fascina.
A odontopediatria como especialidade é ainda uma criança. Desejo que cresça saudável e sem sobressaltos. Quanto maior for a oferta de cursos acreditados, melhor estaremos preparados. Quem não encontra dentro procura fora. E quem também perde são os cofres portugueses. As faculdades públicas deviam ser obri- gadas a ter índices elevados de aposta em pós-graduações que compensassem alguns gastos do ensino pré-graduado, ter uma
percentagem significativa de retribuição para os docentes em fun- ção desses indicadores. A oferta é escassa comparativamente aos países europeus, nomeadamente Espanha. Tem sistemas rígidos que não permitem trabalhar e fazer formação simultaneamente.
Sociedade Portuguesa de Ortodontia (SPO)
Sou mais da plateia do que do palco. Quando me desafiaram a formar uma lista para ser Presidente da SPO, tive de pensar. Já me tinha sido feito o convite uns anos antes e tinha recusado. Devido à escassez de tempo e conhecendo-me, se aceitasse teria de ser para dar tudo e isso acarretaria muito prejuízo pessoal e familiar. Não foi uma decisão fácil. Aceitei no sentido de que a minha experiência e conhecimento fossem uma mais-valia para a ortodontia, no sentido de unir todos os amantes da ortodontia, de criar pontes num espaço de divulgação, discussão e formação.
O conhecimento não é pertença de ninguém. É de todos e para todos! Somos apenas veículos de transmissão desse conhecimento. E veículos que devem ser velozes e eficazes para chegar a no tempo certo. Estabelecer parcerias nacionais e internacionais com sociedades científicas congéneres é uma das minhas ambições. Nunca é demais repetir o meu lema que é “juntos somos mais fortes.” Não tenho adversários, tenho companheiros. Não me interessam nada as guerras, o que não significa que não seja combativa pela justiça. O meu pai dizia que dava uma boa advogada na luta pelos mais fracos.
A SPO é, e pretende ser cada vez mais, um espaço aberto em que todos os que se dedicam à ortodontia se possam sentir representados, um espaço em que possam dar ideias, em que possam debater e divulgar estudos e opiniões, um espaço em que possam fazer “networking”, encontrando pessoas, ideias e soluções para os seus estudos e artigos científicos. Um espaço em que se valoriza a evidência científica e o conhecimento. Começámos há menos de um ano e é preciso tempo para demonstrar trabalho. O primeiro passo é sempre o mais difícil.
Valorizamos e vamos investir cada vez mais em fóruns e simpósios, em encontros de proximidade. Temos tido um trabalho hercúleo na organização dos vários aspetos da SPO, nomeadamente o novo site que foi renovado com inclusão de um separador dedicado ao Congresso Anual. Brevemente o pagamento das quotas poderá ser direto. Baixámos o valor das quotizações. Queremos chegar aos mais novos.
O próximo evento será o XXIX Congresso da SPO, entre 26-28 de outubro, em Oeiras, no Tagus Park. Agradeço à Dra. Maria Cristina Faria Teixeira por ter aceitado o meu convite para a presidência do congresso. Toda a Comissão Organizadora está a trabalhar para que seja um evento de sucesso. Tem como tema “O Poder da Escolha”. Temos que ter o poder de escolha, sem nunca esquecer que um paciente é um ser humano. O diagnóstico é a chave do sucesso, a técnica uma ferramenta terapêutica.
As inscrições podem ser feitas através do site www.sportodontia.pt, no separador do Congresso Anual. Conto com todos. Faça-se sócio. Juntos somos mais fortes.
Se Deus quiser, um dia gostava de trabalhar como médica voluntária em Moçambique. Voltar às raízes. Parafraseando António Gedeão, “O sonho é uma constante da vida”.
— Helena Agostinho. MD, DDS, MSc, PhD. Presidente da Sociedade Portuguesa de Ortodontia