JornalDentistry em 2024-1-29
O Padre António Vieira, célebre filósofo e mestre da oratória, dizia numa frase que continua muito atual: “Pelo que fizeram se hão-de condenar muitos. Pelo que não fizeram, se hão-de condenar todos”.
António Costa, médico dentista.
Muito se tem dito e falado sobre as reformas do Serviço Nacional de Saúde (SNS).. Criação de Unidades Locais de Saúde, reorganização da rede de urgências. Mais concretamente, na área da saúde oral, foram lançadas um conjunto de recomendações com o “Saúde Oral 2.0”. Muito foi falado e escrito, com ampla divulgação mediática durante este ano, tendo por base as políticas de saúde oral.
Na verdade, qual o impacto destas medidas? E em que dimensão foram orçamentadas?
De acordo com o “Global Oral Health status report”, (Organização Mundial de Saúde , OMS, 2022), mundialmente as doenças orais continuam a verificar um crescimento. E, segundo o mesmo relatório, a carga de doença oral não é uniformemente distribuída pela população, afetando desproporcionalmente os mais vulneráveis e desprotegidos dentro da sociedade ao longo do ciclo de vida. Estas faixas da sociedade carregam uma maior carga de doença e, apesar de evitáveis, não acontecem por acaso, inserindo-se nas nas chamadas desigualdades de acesso.
Este facto acontece também em Portugal, apesar de algumas medidas políticas lançadas. De acordo com a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económicos (OCDE), Portugal é o 3º país em que os cidadãos têm maior dificuldade de acesso a cuidados de saúde oral. Isto parece ser um contrassenso, num país com um número excessivo de médicos dentistas por habitante. É também uma prova de que não estão a ser lançadas medidas que promovam o acesso a estes cuidados.
Em primeiro lugar, importa referir que, neste momento, todas as medidas lançadas para melhorar as iniquidades e os indicadores de saúde da população têm uma grande componente voluntária por parte dos profissionais de medicina dentária. Como é sabido, o cheque-dentista, inovador no seu lançamento em 2008, veio proporcionar a possibilidade de acesso a consultas e tratamentos médico-dentários, principalmente aos mais jovens e a grupos populacionais que habitualmente estavam excluídos deste tipo de acesso.
Na altura do lançamento, em 2008, o valor era de 40 euros. Em 2024, será de 45 euros, um crescimento de 12,5%. Em 2008 o salário mínimo nacional era de 426 euros. Em 2024 será de 820 euros, ou seja, cresceu 92,48%. O presta- dor aderente ao programa cheque-dentista está obrigado a realizar os tratamentos que a criança ou jovem necessita por um valor irrisório. Quem lucra é o Estado português, à custa do médico dentista aderente. Os valores praticados em 2008 pouco são alterados nesta atualização que irá ocorrer em 2024, não obstante todo o esforço da OMD, que viu a proposta do seu grupo de trabalho desconsiderada e ignorada.
A única outra via de acesso a cuidados médicos dentários pública e gratuita é através da rede existente de con- sultórios dentários no SNS, com cerca de 150 profissionais. Neste caso, uma vez mais, à custa do profissional, à custa de trabalho mal remunerado. 80% dos médicos dentistas estão com contratos de prestação de serviços com vencimentos vergonhosos e os restantes 20% estão integrados em carreiras gerais, mal remuneradas e sem justiça às suas responsabilidades e formação. Em ambos os casos, com uma população abrangente demasiado extensa, impossibilitando uma resposta rápida.
Em segundo lugar, apesar de ter visto um aumento considerável no Orçamento de Estado para 2024, a saúde oral continua a ser o parente, não pobre, mas o sem-abrigo. O Orçamento para a Saúde em 2024 será aproximadamente de 15 mil milhões de euros. Desse montante, o destinado a saúde oral será aproximadamente 30 milhões de euros, caso todo o planeamento se concretize, o que raramente se verificou até ao momento.
Para termo de comparação, segundo notícia do jornal ECO a 12/12/2023, prevê-se que os aumentos salariais para os médicos do Serviço Nacional de Saúde tenham um impacto orçamental de 90 milhões. Todos são importantes num Serviço Nacional de Saúde que se quer com uma resposta funcional e generalizada. Contudo, é o contrário que se verifica, com um claro benefício de umas profissões em detrimento de outras. Os médicos desempenham um papel fundamental nos serviços, mas também tem de haver espaço para os outros profissionais. Uma resposta em saúde tem de ser multidisciplinar principalmente na era do “One health”. Uma outra prova que vale a pena dissecar é a desconsideração dada aos médicos dentistas no cheque do Projeto de Intervenção Precoce no Cancro Oral (PIPCO), em que uma con- sulta com um profissional altamente especializado, que além da formação geral teve que se submeter a formação específica na área da patologia oral, terá o valor de 20 euros para o diagnóstico, o valor que o Estado Português paga. Alguém imagina ir a uma consulta de qualquer outra especialidade médica com o custo de 20 euros?
Caso haja necessidade de biópsia, acresce 50 euros. Uma vez mais, um valor que demonstra toda a desconsideração pela profissão pelas figuras de decisão política. Qual será o impacto económico das consequências advindas dos problemas de saúde oral? Estão já descritas na literatura associações entre a (falta) de saúde oral e várias patologias, sejam elas do foro cardíaco, respiratório, articular ou mesmo doenças mentais. Está também igualmente descrito na literatura que a prevenção tem um custo significativamente menor que o tratamento. Acham que essas relações patológicas se vão resolver apenas com médicos e enfermeiros, sem envolver médicos dentistas? O programa Saúde Oral 2.0 prevê um conjunto de recomendações que, se implementadas, podem mudar e revolucionar o paradigma. Criação de Serviços de Saúde Oral, integração de cuidados, alterações ao programa cheque-dentista. Não obstante, há que valorizar as lições da história. As promessas nesta área em específico, que se arrastam há décadas, não têm passado, como o nome indica, de promessas. Podemos definir potencial como uma situação possível, mas ainda não acabada.
Não podemos ficar pelo planeamento constante nem pelo invocar ao potencial existente. E, acima de tudo, pela sub-orçamentação dos programas.
Aproxima-se um novo ciclo político. Independentemente de quem ganhar as eleições legislativas, a saúde oral e as suas políticas deverão ser revistas. É necessário valorizar mais a saúde oral e a medicina dentária. É urgente oferecer mais condições aos portugueses, como o cheque-dentista prótese e até mesmo algumas alterações ao programa, passando também pelo pagamento de um valor justo. Acima de tudo, dignificar os profissionais que até agora têm carregado o peso e o custo das políticas públicas. A criação da carreira especial de medicina dentária, de forma célere, será também um novo passo que deverá ser seguido, bem como o cumprimento das recomendações do “Saúde Oral 2.0”.
A medicina dentária e a saúde oral têm estado premeditadamente em segundo plano. É hora de virar a página. As políticas em medicina dentária não podem continuar a ser suportadas pelo esforço de uma classe.
Pelo que fizeram à medicina dentária e saúde oral até agora, “se hão-de condenar muitos”. Mas sem dúvida que, pelo que não tem sido feito, especialmente pela classe política e decisória, não obstante os apelos, as recomendações, ignorando profissionais e académicos, “se hão de condenar todos”.