O JornalDentistry em 2017-9-20
Lembro, a propósito dos 12 anos que passaram desde que sigo doentes com patologia do sono e, no contexto do convite que me foi endereçado pel’O JornalDentistry, aquele distinto professor de medicina com o diagnóstico de síndrome de resistência das vias aéreas, que olhava com alguma relutância para mim e para o colega Edmund Rose que viera da Alemanha – Universidade de Freiburg, para me ajudar a implementar aquela que seria a primeira consulta de medicina oral do sono do país, a decorrer no Centro de Electroencefalografia e Neurofisiologia Clínica da Prof. Doutora Teresa Paiva.
Dr. MIguel Meira e Cruz (MSC, DDS)
Esta relutância foi, aliás, experienciada por mim quando em junho de 2006 assisti, pela primeira vez ao congresso americano de medicina do sono e foram destacados resultados promissores em aspetos neuro-cognitivos, metabólicos e cardiovasculares de doentes com roncopatia e apneia obstrutiva do sono tratados com dispositivos orais. Num encontro reservado à medicina dentária, tido na mesma cidade, mas em espaço físico distinto e com menor dimensão (continuo a ter dificuldade em aceitar esta separação), o Professor Allan Lowe, de Toronto, fazia uma conferência inaugural com interesse extraordinário sobre o avanço mandibular: vantagens dos dispositivos no sucesso terapêutico e potenciais efeitos adversos.
Eu tinha terminado há pouco tempo a especialização em medicina do sono e a fase curricular do mestrado em ciências do sono na Faculdade de Medicina de Lisboa e por convite do Dr. João Correia Pinto, diretor do serviço de Estomatologia do Hospital de São João, no Porto iniciei uma consulta de patologia do sono integrada com a de Temporo-Mandibular naquele hospital. Sentia-me ávido de conhecimento. No entanto, o interesse por esta modalidade terapêutica e pela integração da medicina dentária nas unidades de sono era, apesar de reconhecido internacionalmente, muito elementar no mundo inteiro e com prática inexistente em Portugal – era estranho um médico dentista dedicar-se ao sono. Apesar dos eventos científicos promovidos pela Associação Portuguesa de Sono, faltava a integração desta matéria e não havia médicos dentistas presentes nos encontros médicos do sono.
Várias empresas iniciaram a produção de aparelhos pré-fabricados que ofereciam o mecanismo de ação desejado, embora com problemas vários de retenção e adesão ao longo do tempo para além da necessidade de terem uma dimensão desfavorável ao conforto e aceitabilidade do doente. Preparava-se a redação a atualizar as primeiras orientações clínicas da Academia Americana de Medicina do Sono e os dispositivos orais, na vertente do avanço mandibular, eram considerados terapêutica de 2ª linha nas perturbações respiratórias do sono à exceção da forma mais ligeira da doença ou da roncopatia isolada, muitas vezes apelidada de forma controversa de “ressonar benigno” para desconcerto do Prof. Guilleminault. Ainda hoje defendo que os dispositivos orais pré-fabricados podem em condições concretas, ocupar um lugar importante: alguns deles, manuseados por profissionais experientes e com formação diferenciada em medicina do sono (e medicina oral do sono), com indicações precisas e na dependência de alternativas válidas e exequíveis que devem ter em conta a eficácia, a taxa de adesão, os efeitos colaterais, o custo e a disponibilidade. Contudo, não existe hoje, em termos gerais, qualquer referência a esta variante nas recomendações das principais sociedades científicas da área, e a que existe refere que devem ser utilizados dispositivos personalizados, preferencialmente com mecanismos de titulação passível de ser confirmada em exame de sono terapêutico. Os dispositivos de avanço mandibular personalizados passaram a armas terapêuticas de primeira linha na “roncopatia”, na SAOS de gravidade ligeira a moderada e, a custo, pela evidência limitada, admissíveis nas formas graves da doença quando a pressão positiva não se revelava eficaz ou não está indicada.
A intervenção sobre o sono na medicina oral pragmatizava-se, em 2006, quase que exclusivamente sobre a área da patologia respiratória, apesar da demonstração inequívoca do potencial que os especialistas em medicina oral poderiam ter sobre áreas do seu domínio, entre outras, o bruxismo (do sono), no contexto das perturbações dos movimentos (na altura classificadas como parassónias) e a dor orofacial crónica (motivo importante de consulta com influências de relevância maior na qualidade de vida, bem como interferência sobre o perfil psiquiátrico e comportamental).
Em 2009, quando o Congresso da Sociedade Europeia de Investigação em Sono (ESRS) se realizou em Lisboa, fui desafiado a integrar a direção da Sociedade Portuguesa de Medicina Oral do Sono, tendo sido este o pontapé de saída para a organização do I Congresso de Medicina Oral do Sono no nosso País, a que tive a honra de presidir. Conceituados nomes nacionais e internacionais da designada “Dental Sleep Medicine” (designação que pouco honra, na minha opinião, a real importância que os especialistas podem ter neste campo) marcaram presença, partilhando conceitos e aplicações práticas. No ano seguinte, propus ao Prof. Doutor Francisco Salvado, diretor do Serviço de Estomatologia do Hospital de Santa Maria, a organização de uma consulta de sono cuja operacionalidade integrava um conjunto de unidades de sono em funcionamento no mesmo centro hospitalar. Neste âmbito, a sua aceitação e o apoio a um projeto de investigação na fronteira entre ortodontia e sono motivaram a formação pós-graduada da Dra. Maria João Piñeiro, Dra. Ana Galamba e da Dra. Carla Costa em Ciências do Sono. Tínhamos assim, em 2010, quatro médicos dentistas com formação integral especializada e pós-graduada em medicina do sono. Vivemos num mundo pequeno e, apesar da convicção que conservo sobre a necessidade de estruturar regras de atuação idónea na medicina oral do sono, não existe, no momento, qualquer órgão de regulamentação, assim como permanecem desmaterializadas quaisquer orientações nacionais sobre o tema. A multiplicação significativa de colegas instruídos em cursos promovidos por marcas nacionais e estrangeiras de dispositivos diagnósticos e terapêuticos começou a gerar um desejável aumento do alerta sobre a matéria, mas a inevitável tendência arriscada de intitular inadequadamente “especialistas” sem diferenciação e, sobretudo, sem conhecimento adequado. A Associação Portuguesa de Cronobiologia e Medicina do Sono nasceu, em 2012, com o objetivo principal de educar e formar clínicos nesta e noutras áreas. Reconhecendo a insuficiência neste campo e a necessidade de maior valor, um grupo multidisciplinar colabora desde então em diversos campos da medicina do sono, quer no âmbito científico, pedagógico ou clínico. Para além dos diversos cursos de curta duração que têm sido implementados ao longo destes sete anos, em 2016, em conjunto com a CESPU formação, foi criada a Pós-Graduação de um ano em Cronobiologia e Medicina do Sono. O sucesso das primeiras duas edições (a segunda a decorrer) e o envolvimento de personalidades de destaque internacional permitiram a obtenção do reconhecimento da World Sleep Society que se mantém na 3ª edição com início previsto para março de 2018. Neste contexto, foram formados até à data, mais três especialistas na área da medicina oral – dois médicos dentistas e um otorrinolaringologista - em conjunto com outras especialidades. A secção de medicina oral da APCMS, tem preparado alguns cursos de formação inicial e avançada em medicina do sono, quer no contexto das perturbações respiratórias, quer no contexto mais amplo do bruxismo e da dor e até no âmbito generalizado do sono e patologia diversa. Em associação com algumas sociedades nacionais e internacionais a APCMS tem defendido a importância que a medicina dentária e estomatologia assumem na abordagem do paciente com perturbação do sono conferindo capacidade de suspeição, referenciação adequada e diagnóstico destas doenças. Durante os anos mais recentes emergiram sociedades com interesse particular numa ou noutra área do sono, promovendo o alerta e o trabalho ativo na ciência e clínica dessas linhas.
Com a participação em projetos como o grupo Latino-Americano de Cronobiologia e Medicina do Sono e a World Society of Oral Sleep Medicine, a APCMS tem apoiado a promoção do sono no país e no estrangeiro e os resultados refletem-se nas publicações concretizadas e na organização de eventos. Exemplo disso é o I Congresso Português de Cronobiologia e Medicina do Sono, que tem data marcada para 16 e 17 de março de 2018. Porém, em 2017, o sono dos portugueses mantém-se aquém do desejável e com longo caminho a ser percorrido sem que exista, no entanto, qualquer dúvida sobre o contributo que toda esta história tem tido para que se torne melhor e sobretudo para que seja possível conhecer e transmitir, em maior profundidade, as vantagens de um sono adequado. A transdisciplinaridade tem de vigorar, é uma vantagem para a ciência e para os intervenientes, mas inequivocamente, para os doentes. Que o bom senso domine a evidência, é ainda um quesito fundamental. Esta é a história da Medicina Oral do Sono Nacional e eu sinto-me orgulhoso deste percurso!
Artigo publicado na edição de setembro do "O JornalDentistry" edição digital e impressa