O JornalDentistry em 2022-7-15
Às vezes custa-nos parar. Não digo abrandar, digo mesmo parar. Permitir-nos não fazer nada. Sem peso na consciência, sem sentir que estamos a desperdiçar tempo.
Célia Coutinho Alves, DDS, PhD, médica dentista doutorada em periodontologia
Num mundo de permanentes estímulos, saber parar e ficar somente a contemplar é uma dádiva. Às vezes, custa-nos parar também nas férias. Programamos os dias de férias como se dias de trabalho se tratassem, com horários e metas a cumprir. Procuramos ocupar os dias de forma a nunca ter de responder à pergunta: e amanhã, o que vou fazer?
Este pensamento de estar sempre à procura do estímulo, do que nos ocupe o corpo e a mente reflete-se, também, na forma como ocupamos os nossos filhos em férias. Eu ainda sou do tempo das férias grandes. Os quase três meses em que não tínhamos “nada” para fazer. E não tenho a mais pequena dúvida de que eram capazes de ser os meses mais enriquecedores e formadores de todo o ano. Tínhamos de nos reinventar, inventar o que fazer, e isso permitia-nos crescer e desenvolver sem estaca. Porque às vezes é preciso tirar a estaca para ver para onde os ramos pendem.
Definimo-nos sempre como seres que “fazem” e não somente como seres que “são” e isso é tão verdade quanto o caricato das nossas consultas de medicina dentária, nas quais, como médicos que “fazem”, só fica- mos (e os pacientes) satisfeitos e de dever cumprido quando “fazemos” alguma coisa na boca do paciente. Uma consulta em que só falamos com o paciente não é consulta. Às vezes até nos custa cobrar por ela. Permitir-nos cobrar pelo ato clínico da consulta.
Cobrar por sermos médicos den- tistas. Como se não fosse normal para um psiquiatra ou um neurologista cobrar pelas consultas. A autovalorização da nossa atuação clínica tem de ser imposta por nós médicos dentistas, sob o risco de, se assim não for, continuarmos a ter de justificar honorários por consultas marcadas com tempo na agenda, em que empenhamos todo o conhecimento e experiência para bem diagnosticar e tratar os nossos pacientes. Mesmo que tratar possa implicar naquele ato uma radiografia e receita médica.
Se me pedissem uma receita para a medicina dentária portuguesa, agora, após mais de dois anos de pandemia e reuniões Zoom, tinha de incluir os energizantes e bioestimulantes. Os médicos dentistas estão mais cansados e os pacientes mais impacientes. A exigência a que nos propomos diariamente deve ser compensada no melhor serviço que prestamos. Mas confesso que a energia posta a resolver tudo o que vai surgindo ao lado da cadeira nos esgota na obrigação de nos superarmos ao serviço dos nossos pacientes.
Por isso, nesta receita tenho de incluir, também, férias. Férias para não fazer medicina dentária, sem deixar de ser médicos dentistas. Já o CR7 nos ensinou que o segredo do treino não é o modelo dos exercícios ativos, mas o plano de recuperação. O descanso no treino é mais importante que o exercício. Parece paradoxal, mas o exemplo do melhor do mundo não deixa dúvidas. Recuperar para voltar mais forte, mais capaz, melhor.
Assim, as férias são tão ou mais importantes que o trabalho. São tempo de crescimento e de recuperação. São a época, por excelência, em que trabalhamos mais no que somos, do que no que fazemos. E trabalhar na nossa essência é tornar-nos mais fortes. E ao tornar-nos mais fortes, tornamo-nos mais capazes de trabalhar para nós e para os outros. Porque, assim como o propósito da videira é dar uvas, das abelhas polinizar e fazer mel, do cavalo ganhar a corrida ou do cão encontrar o rasto, o propósito do ser humano é trabalhar para o bem comum. E só com um CR7 forte e capaz pode a equipa toda ganhar. Desejo a todos os colegas umas excelentes e merecidas férias, daquelas que juntam memórias. Daquelas que recuperam corpo e alma e nos recentram no essencial: a vontade de trabalhar para o bem comum. Pois o universo retribui sempre o que genuinamente pusermos ao serviço do outro. Mais tarde ou mais cedo, mas sempre.
— Célia Coutinho Alves , Médica Dentista Especialista em Periodontologia pela OMD Doutorada em Periodontologia pela Universidade Santiago de Compostela
Célia Coutinho Alves, DDS, PhD, médica dentista doutorada em periodontologia